O Estado burguês e a luta pela Reforma Agrária




Por Cedenir de Oliveira*

O Estado não se resume aos governos, poderes executivos, legislativo e judiciário.  Faz parte dele todas as esferas políticas, burocrático-administrativas, órgãos repressivos (forças armadas e polícias) e a esfera financeira pública.

Por Cedenir de Oliveira*

O Estado não se resume aos governos, poderes executivos, legislativo e judiciário.  Faz parte dele todas as esferas políticas, burocrático-administrativas, órgãos repressivos (forças armadas e polícias) e a esfera financeira pública.

Num processo eleitoral, portanto, se disputa apenas parte do Estado: os poderes legislativo e executivo. As outras esferas tornam-se blindadas à participação popular, assegurando a continuidade da natureza do Estado burguês e dos seus objetivos classistas.

Há duas grandes interpretações sobre a natureza do Estado.  De um lado, os liberais, que amparados pelos princípios republicanos, derrotaram violentamente, com guerras e revoluções burguesas, a sociedade feudal. Fundaram a sociedade burguesa, um avanço significativo para a humanidade em relação à sociedade deixada para trás. Para estes, o Estado é um ente neutro, imparcial, está acima das disputas e conflitos de classes. Tem como função mediar esses conflitos, assegurando a estabilidade social e garantindo a manutenção e reprodução da sociedade burguesa.

Do outro lado, há a elaboração marxista sobre a natureza do Estado. Neste caso, o Estado nasce como consequência de uma sociedade dividida em classes, com interesses e objetivos completamente antagônicos e irreconciliáveis entre os que detêm os meios de produção, e os que sobrevivem apenas com sua força de trabalho.

Portanto, exatamente por ser resultante da sociedade dividida em classes, o estado jamais será neutro ou imparcial. Ele sempre estará a serviço dos interesses e objetivos da classe dominante. Na sociedade capitalista, estará voltado aos interesses da burguesia, enquanto numa sociedade socialista, estaria voltado aos interesses do proletariado.

Ainda de acordo com a teoria marxista, o Estado burguês tem como principais tarefas: a) atender aos interesses da classe dominante e aumentar ainda mais sua hegemonia; b) impedir quaisquer tentativas de uma revolução social anti-capitalista; c) mediar os diferentes conflitos de interesses entre os distintos grupos sócio-econômicos que compõe o bloco dominante da sociedade burguesa. A própria burguesia “briga” entre si para disputar a implementação de políticas públicas que atendam seus interesses específicos.

Leia mais:
Reforma Agrária popular, por terra e soberania alimentar
Onde tudo começou: Os Sem Terra de ontem e hoje
Chicão: “O congresso de 1985 é um marco histórico do MST. Demos uma nova cara à luta pela terra”

Para cumprir com eficácia a função de ser um instrumento de dominação da classe dominante, assegurar a estabilidade social e a manutenção e reprodução da sociedade burguesa, o Estado precisa aparecer perante a sociedade como neutro, imparcial e acima dos conflitos de classes. Precisa escamotear sua natureza de classe. Caso contrário, a ordem só seria mantida com o aparato repressivo, para que uma pequena minoria da população (burguesia) consiga explorar a maioria (classes subalternas).

O aparato repressivo é a ultima medida do Estado burguês para assegurar a sociedade burguesa, que no extremo, se transformam em golpes de Estados e ditaduras. Não existindo esse perigo, haverá um esforço para formar um consenso entre as diferentes classes sociais. As ideias (ideologia) da classe dominante serão adotadas pelas próprias classes subalternas, como sendo suas.

Máscaras

As eleições jogam um papel importante nessa tarefa de escamotear o caráter classista do Estado burguês. Participar das eleições e ocupar espaços no poder legislativo e executivo cria a sensação geral que vivemos numa plena democracia. A participação popular nas outras esferas do Estado está vedada! A atuação do estado burguês contra um movimento grevista, por exemplo, ou pela desocupação de um latifúndio é imediata.
Já os desrespeitos das leis trabalhistas, existência de trabalho escravo, assassinatos de trabalhadores e trabalhadoras rurais, se perdem nos labirintos e gavetas do judiciário, assegurando, quase sempre, a impunidade. Os liberais dirão que isso se deve as imperfeições dos sistemas e a falhas humanas individualizadas. Jamais reconhecerão que essa atuação é ditada pela natureza do Estado burguês.

Os meios de comunicação, hegemonizados pela classe dominante, se encarregaram de manipular, ressaltar ou silenciar as informações que lhes interessam. Trata-se de outro instrumento que busca aparecer imparcial e neutro naquilo que transmite à sociedade. Basta ver como noticia os casos de corrupção contra os que ela considera seus inimigos, em comparação com as aves do seu ninho, como os tucanos paulistas.

O papel dos movimentos sociais

Frente a essa realidade, o que cabe aos movimentos populares, como o MST, no seu relacionamento com o Estado que tem uma natureza burguesa? A natureza de um movimento popular difere totalmente de um partido político. Enquanto o movimento popular agrega um segmento bem especifico da sociedade – os sem terras, no caso – os partidos políticos têm a capacidade de agregar amplos setores da sociedade.

Quando se trata de um partido classista, que não seja burguês, em torno de seu projeto político aglutina os diversos segmentos da classe trabalhadora, do campo e da cidade. Quando revolucionário, o seu objetivo é transformar a classe trabalhadora em protagonista de sua história e fazer uma revolução social e anticapitalista.

Já o movimento popular, nas limitações de agregar um segmento social especifico e contemplar, basicamente, o atendimento desse segmento social nas suas pautas reivindicatórias, restringe sua atuação à política de “bater e negociar” com o Estado burguês. Nas acertadas palavras do nosso mestre Florestan Fernandes, cabe aos movimentos populares não se deixar cooptar, não se deixar destruir e sempre obter conquistas.

No entanto, esse enfrentamento com o Estado é essencial para organizar e formar uma consciência classista dos integrantes desse movimento popular. É exatamente na luta pela Reforma Agrária que os Sem Terra percebem que os seus problemas são os mesmos dos outros segmentos da classe trabalhadora.

No caso específico da Reforma Agrária, não basta mais apenas a desapropriação do latifúndio improdutivo e repassá-lo às famílias sem terra. Além de lutar e ocupar os latifúndio, cabe ao MST ser o portador de um novo modelo de agricultura para o país, junto às organizações da Via Campesina Brasil. Um modelo de agricultura centrado na produção agroecológica de alimentos,  num sistema de cooperação agrícola e associado a pequenas agroindústrias, que respeite o meio ambiente e garanta a saúde dos produtores e consumidores dos produtos agrícolas, e que contribua para o país conquistar a soberania alimentar.

Por meio das lutas e da consolidação desse modelo de agricultura, não devemos perder as oportunidades de dialogar com a sociedade brasileira. Temos muitas conquistas nas áreas de assentamentos. Temos um acúmulo prático e teórico na área da educação, cultura, comunicação, saúde, agroecologia, etc. Essas conquistas devem ser compartilhadas com a sociedade onde nossos assentamentos estão localizados. Também a motivando a se organizar e lutar.

A população do meio rural é completamente desassistida de políticas públicas, de modo geral. Temos uma identidade de lutas e organização nessas regiões. Por que não se associar à população dos pequenos municípios rurais, compartilhar nossas experiências e motivá-los a lutar para arrancar do Estado melhores condições de vida para o campo? A proposta do agronegócio se restringe em expulsar essa população para as periferias das grandes cidades.

O agronegócio não é forte apenas por causa do seu poder econômico e político. Sua força também reside na sua capacidade de criar um consenso junto à sociedade brasileira em torno do seu projeto de agricultura. A sociedade vê apenas os aspectos mais visíveis desse modelo, aparentando ser moderno, produtivo e essencial para a economia do país. Esquece de mostrar que esse modelo se sustenta por meio da destruição das duas principais fontes de produção da riqueza: o ser humano e a natureza. Esconde que essa alta produtividade é uma face da mesma moeda do trabalho escravo, êxodo rural, concentração fundiária e desrespeito as leis trabalhistas e ambientais.

Qual é o modelo de agricultura que queremos para o país e levar às gerações futuras? Este deve ser nosso ponto de partida com a sociedade brasileira, começando nas regiões onde estamos organizados.

Em resumo, para que continuemos obtendo conquistas e organizando o campo, os enfrentamentos com o Estado burguês nos exigem: a) fortalecer e qualificar nossa organização interna, nos tornando um movimento forte, atuante e ágil para interferir nas conjunturas políticas e enfrentar os inimigos da Reforma Agrária; b) promover lutas (a classe trabalhadora jamais obteve uma conquista do Estado burguês que não tenha sido resultado das lutas e mobilizações populares); c) Construir um grau maior de unidade e de alianças no campo e com os trabalhadores urbanos; d) dialogar com a sociedade para fazer a contra-hegemonia da proposta do agronegócio à agricultura brasileira, e buscar o apoio à nossa proposta de Reforma Agrária Popular.

Se avançarmos nesses quatro pontos, certamente teremos mais forças e condições de obter conquistas junto ao Estado, mesmo sendo ele burguês.

 

* Cedenir Oliveira é membro da coordenação nacional do MST