Famílias podem ser despejadas em área que cultivam há 8 anos


Por Ednubia Ghisi
Do Brasil de Fato


Por Ednubia Ghisi
Do Brasil de Fato

No Noroeste do paranaense, entre as cidades de Guairacá e Planaltina, 76 famílias estão ameaçadas de perder a terra onde há oito anos cultivam a área, estudam e garantem a dignidade negada pela lógica do agronegócio. As conquistas alcançadas pelas famílias estão ameaçadas pela dificuldade em desapropriar a terra. Com poucas chances do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) conseguir a desapropriação, as famílias vão diretamente ao judiciário buscar a posse definitiva da terra, obtendo o título de propriedade pela desapropriação judicial.

As famílias vivem no pré-assentamento Elias Gonçalves Meura desde julho de 2004, quando cerca de 400 famílias camponesas ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam a Fazenda Santa Filomena, declarada improdutiva pelo Incra em 1998. A ocupação denunciou a improdutividade da área e a demora na destinação do território para a reforma agrária.

Apesar do Decreto Presidencial publicado há 14 anos classificar a fazenda como improdutiva, os 1.797 hectares até hoje não foram desapropriados. Depois de 12 anos de disputas judiciais em que o proprietário buscava impedir a desapropriação, em fevereiro de 2012 a Advocacia-Geral da União (AGU) cometeu um erro e deixou de recorrer de uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) desfavorável ao Incra, impossibilitando a desapropriação da área.

Para o integrante da coordenação do MST no Paraná, José Damasceno de Oliveira, o caso da fazenda Santa Filomena reflete o que acontece em outros municípios do Brasil, em que, apesar do decreto declaratório de improdutividade, os latifundiários conseguem adiar e até impedir a desapropriação para reforma agrária. Uma das formas utilizadas pelos fazendeiros para adiar a desapropriação é burlar a avaliação de improdutividade: “Em vários casos o juiz nomeia um perito judicial que às vezes não entende de agricultura e que acaba desfazendo o que foi feito por uma equipe técnica do Incra”, lamenta Oliveira.

Desapropriação judicial

Sem possibilidade do Incra desapropriar a terra pelo decreto de 1998, as famílias acampadas encontraram no Código Civil a possibilidade de obter o título de propriedade da fazenda por meio da chamada desapropriação judicial. Segundo o art. 1228 §4º do Código Civil uma propriedade pode ser desapropriada se for extensa e ocupada, por mais de cinco anos, por um considerável número de pessoas que tenha desenvolvido obras e serviços de relevante interesse social e econômico.

Nesses últimos oito anos, coletivamente, as famílias acampadas passaram a produzir, morar e viver na terra, investindo o pouco que tinham, fruto exclusivo do trabalho, sem qualquer outra opção de vida, depositando toda sua esperança na criação do assentamento. Essas são as obras e serviços de relevante interesse social e econômico que estão sendo levadas ao judiciário para justificar a desapropriação. A desapropriação judicial autorizada pelo Código Civil foi poucas vezes utilizadas. Para o professor doutor Carlos Frederico Marés de Souza Filho, a desapropriação judicial “é ferramenta jurídica de realização de princípios e objetivos fundamentais da organização social brasileira recriada e reconstituída em 1988. Esta ferramenta a lei colocou à disposição da cidadania, mas na mão do Poder Judiciário para seu reconhecimento, realização e determinação”.

A ação de desapropriação judicial foi apresentada dia 25 de julho e será apreciada pela Justiça federal de Paranavaí. Caso o poder judiciário decida receber a ação, as famílias deverão ser mantidas na posse da terra até julgamento final da desapropriação judicial, o que pode demorar anos. Se o juiz não receber a ação, as famílias podem ser despejadas a qualquer momento. No dia 31 de julho será realizada a audiência que decidirá o futuro das famílias, pois lá será negociada a permanência na terra.
Terra e trabalho

Os camponeses cultivam a área para o autossustento e também para garantir renda com a venda da produção em feiras e comércios da região

Mandioca, feijão, melancia, frutas e uma variedade de verduras e hortaliças cobrem a terra do antigo latifúndio improdutivo. Desde que ocuparam a Fazenda Santa Filomena, os camponeses cultivam a terra para o autossustento e também para garantir renda com a venda da produção em feiras e comércios da região. Apesar de não receber qualquer apoio governamental para a produção, o assentamento hoje fornece alimentos a programas do governo, como o Programa de

Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por meio da cooperativa de Comercialização e Reforma Agrária Avante Ltda (Coana), localizada em Querência do Norte/PR. Mais de 30 famílias estão envolvidas na produção ligada à cooperativa, em um total de 120 pessoas do préassentamento.

Os trabalhadores aliam produção à preservação do meio ambiente e preservam 20% do território para reserva legal. A maior parte das famílias utiliza a agroecologia como matriz tecnológica. Antes de conquistar a terra, o agricultor acampado Luiz Fernandes recorda que trabalhava em grandes fazendas e sofria as consequências do uso de agrotóxicos: “Eu era empregado rural numa fazenda de monocultivo de soja, trigo e milho, trabalhava com todas as classes de veneno. No início era bom, trabalho fácil, com os equipamentos, mas comecei a sentir a pele sensível”.

A importância do acampamento na região é reconhecida nas declarações de apoio à desapropriação da área emitidas pelo Departamento de Agricultura e Pecuária da Prefeitura Municipal de Amaiporã, pela Associação Comercial, Industrial, Agropecuária e de Profissionais de Planaltina, pela Coana e por diversos empreendimentos comerciais da cidade, que firmaram apoio à desapropriação da área.
Educação do campo e para o campo

A escola foi erguida com lona preta, sobre chão batido no local em que os antigos proprietários colocavam os animais

As primeiras salas de aula do acampamento Elias Meura começaram a ser construídas no segundo mês da ocupação, em 2004. A partir do trabalho dos próprios acampados, a escola foi erguida com lona preta, sobre chão batido no local em que os antigos proprietários colocavam os animais. Desde o início, a escola atende os acampados e também integrantes do Assentamento Milton Santos, localizado na região. O acesso à educação é uma das grandes conquistas dos camponeses a partir da ocupação da terra e da organização da vida de forma coletiva.

Batizada de Carlos Marighella, a escola itinerante tem 11 professores: seis são do acampamento e lecionam para o ensino infantil e de 1º a 5º anos do ensino fundamental, e outro cinco vêm de outras localidades para ministrar as aulas do 6º ao 9º ano. Além das crianças, adolescentes e jovens que cursam as sérias regulares, a escola também possibilita acesso à educação para jovens e adultos e ajuda a suprir a baixa escolaridade da comunidade.

“As escolas do campo são essenciais por estarem voltadas à vida dos educando, por relacionarem o ensino com o cotidiano. Elas movimentam a comunidade e ajudam a organizar”, afirma Alcione Nunes Farias, integrante do setor de educação no MST que trabalhou no início da escola itinerante Carlos Marighella. Para o professor, a educação da cidade forma as crianças retirando a identidade camponesa, contribuindo para a saída das pessoas do campo.

Por ter estudado um período na cidade, a adolescente Keila Souza dos Santos sentiu na pele o significado maior da educação do campo, voltada para o camponeses: “Nas escolas da cidade as pessoas têm posições racistas, não entendem nosso modo de vida. Eles procuram briga com os alunos do MST e os professores chamavam os sem-terra de vagabundos”. Keila é moradora do Assentamento Milton Santos e foi uma das crianças prejudicadas pela falta de vagas nas escolas da cidade e pela falta de transporte escolar.

Durante os oito anos de acampamento a escola melhorou, conseguiu a legalização do ensino como escola itinerante, tem melhor estrutura para atender cerca de 50 educandos, mas sempre com pouco ou nenhum apoio do poder público. “O estado legalizou as escolas, mas não assume quase nenhuma tarefa e disponibilização de verba. Tudo é a base da luta e das reivindicações populares”, garante o professor.

Crianças, adolescentes e jovens do campo têm o direito à educação ameaçado pela negligência do poder público em todo o Brasil. Desde 2002, cerca de 24 mil escolas do campo foram fechadas no país.
História de violência e impunidade

A ação violenta resultou em seis camponeses feridos e na morte do jovem Elias Gonçalves de Meura, de apenas 20 anos

Durante a ocupação da Fazenda Santa Filomena, em 2004, jagunços atiraram contra os camponeses por mais de três horas. A ação violenta resultou em seis camponeses feridos e na morte do jovem Elias Gonçalves de Meura, de apenas 20 anos, que hoje dá nome ao pré-assentamento. O inquérito policial do assassinato permanece inconcluso e o caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos em junho deste ano.

A morte de Elias Gonçalves de Meura se junta a outras 22 ocorridas entre 1997 e 2008 no Paraná, em decorrência de conflitos no campo e por milícias armadas a serviço de grandes fazendeiros. Em apenas um dos 23 casos houve condenação do culpado: Jair Firmino Borracha foi condenado em 2011 a 15 anos de prisão pelo assassinato do trabalhador rural Eduardo Anghinoni em 1999, também no Noroeste do estado, no município de Querência do Norte.

O cenário paranaense se repete em outros estados brasileiros. Estudo recentemente publicado pela ONG Global Witness aponta o Brasil como responsável pela metade dos assassinatos de defensores de direitos humanos e ambientais no mundo. Dos 711 assassinatos, 365 ocorreram no Brasil.